terça-feira, 20 de janeiro de 2009

ARARAT
(2006-2008)

1
HORIZONTE

Este
o horizonte que miramos
secura de olhar entrevisto
ninho vazio entre a folhagem
linha da mão a guardar a seta.
O horizonte nunca chega.
Preâmbulo de esperas
a anunciar as tardes e os amanheceres
céu plúmbeo sob a abóbada celeste
teu catre, a vestimenta de ontem
nuvem antes de desmanchar-se.
Eternidade abreviada
antecipando o que virá.

17/10/2006 – 1h16

2
PAISAGEM INTEIRA

Nascemos
para um dia sem
presságios:
nada tomba sob as árvores
e nos vemos náufragos de uma paisagem
inteira.

19/10/2006 – 2h49

3
PALIDEZ

Tudo empalidece.
Fica como ilha em meio ao oceano.
O horizonte é líquido como a esfera terrestre.
Os desertos jorram águas infinitas
e infinitos olhos habitam planícies
onde antes nada havia.


4
HOJE

A chuva fina toca meu ouvido
com seu tilintar longínquo.
Os lagos espelham sons e aves
arrostam-se desnudas.
Tudo se abranda com a água que corre
e imerge os feixes líquidos
sobre mantos de lava.
A casa flutua sobre esta rocha inaudível
e escorrem as faces das ruas
com tremores de frio.
As mãos conhecem os livros
e as páginas sopram-se à brisa interstícia.
Horizonte fulgoroso coberto de névoas.
Ouço as vozes mais doces,
para além de um dizer de horas.
Descobre minha espádua nua.
Vivemos, e isso é hoje.

14/11/2006 – 1h27

5
POEMA DE REGRESSO

Regresso por outra senda
sem luz e só o dia se estende
um pouco mais, perdurando de nunca ser,
não bastasse o que foi vivido.

Pensa no que em mim acreditas, não no vago,
mas o que estou a criar, mesmo que mais fácil
seja desistir se opor ao erro.

Amor é talento. Fervor
indubitado, verdade em tudo:
amar a tudo por tudo amar.

9/11/2006 – 3h47

6
A HORA

O que ficou de teu silente espelho
– descalabro de teu caminho –
voz de infinitos sons sem paradeiro,
nave rouca, esguio mastro?

O que restou de tua cava aurora,
fundada a amurada, sextante inverso?
O que resta de tua esmerada ronda?
Verdes cálices de infenso líquido.

Resta esta pouca hora,
esses poucos móveis, toda a casa imersa
sob a sombra de teus olhos,
ao alcance das mãos, essas mãos austeras.

Resta solombra, ave de teu punhal,
agora esguio, verve de tua boca,
agora espessa, riquezas nossas,
tão longas vagas,
aquilo que se põe a esmo,
e encontra sempre sua hora.

20/11/2006 – 3h16

7
EPIFANIA

O mar, póstumo e ferido,
que, antigo e breve,
molda meus desígnios, traz-me
essa nova terra, viva, sob os pés,
meu dizer futuro sem palavra conhecida.

Ressurjo,
um nascer esguio,
sem voz ou alento para o gracejo,
mas a escusa de outro amor negado.

Célebres, o que fazeis de vós?
Vós que servis, atentos,
a memória das águas,
o que jaz submerso e, mesmo assim,
fala?

Cinza, o pó das eras,
argamassa, fronte, terra,
coroa de louros sobre a tez
alvíssima.

Despe, pecado e culpa,
nada te retém, à míngua.

Eis o ósculo de Judas,
o peregrino, o cravo das mãos,
a hóstia e mirra.
Séculos não te explicarão.

Ergue, na selva oscura,
as mãos sem o cálice,
bendita urdidura.

Terão a passagem, olivais ao largo,
olhos e ouvidos do rei.

Mão e espada,
uma só ferramenta.
Sobre o cenho, espinho,
sob o manto, a lavra.

Terão os homens assistido
aos dias que se passaram
desde tua epifania.
Escolherão um deles para
salvar-te e ainda
louvar-te.

Serão eles os herdeiros
de tudo, os filhos pródigos
do mundo,
hoje nesta terra arguta,
esse bólido centáurico,
nave, ave,
fulminado desterro.

Hoje o dia é ontem.
E nunca baixaremos
ao mar, desceremos
às profundezas dos rios,
à procura dos peixes
e de teu arado.

Serão todos os seres
o infinitesimal, o nada,
espalhados por toda a parte,
à espera.

6/01/2007 – 22h44

8
DEUS

Deus em suas andanças
anda por onde não o vêem,
mas vê a todos,
seja por bem ou não.
Garimpa onde há ouro,
reúne o que está disperso,
espalha sementes
e espera, espera a colheita,
infinitamente.
Deus não se cansa de sua lavra,
lavoura seca ou escassa,
umedecida pelas gotas que lhe escorrem
das mãos.
Deus acolhe as palavras
e as ceva para outro ano.
Ano a ano, ara a terra
com sua brandura.
Nada esquece nem deixa fenecer.
Se um dique se rompe,
a inundação é uma bênção,
pois mesmo o desastre
tem salvação.
Se tudo é ciclo e ciclo é vida,
nascimento e morte
também o são,
e Deus renasce naquele
que permanece e ora.

4/02/2007 – 00h22

9
OS HOMENS

E vieram os homens pelas estradas,
tirando o sossego dos peixes,
testemunhas do tempo,
ermos marulhos,
permanência de toda uma vida
entre as águas.
Vieram secar as fontes,
as mesmas que tocaram as margens,
o leito de rio banhado de lágrimas,
amplo braço de sua estreita origem.
Vieram colher os frutos de seu talo,
ramo encurvado sobre o solo
coberto de relva mínima,
chão de sementes caídas,
o mesmo que te acolhe hoje,
lugar de ensimesmado canto,
nascedouro de palavras soltas,
veio aurífero de poemas –
lar austero repleto de folhagens.
Vieram e logo partiram,
e nada deixaram para trás.
Carregaram a cesta de pomos
e lentamente cruzaram as mãos,
como se não houvesse mais o que fazer.
Vieram e se foram,
deixando-nos a idéia
de que ainda existiremos
em algum lugar.

5/02/2007 – 20h08

10
VOZ E ESPANTO

Meu gesto te acolhe,
ser infinito e brando.
A largura de tua fronte.
Teu lábio sorve a sílaba que emites
e teu fervor é um oásis
de areia e tempo.
Colhes a porção de água,
sede úmida,
a balbuciar teu nome.
Revisitas o que te é caro.
Eu, orante de tuas palavras,
solfejo a tua lira
com voz e espanto.

14/02/2007 – 16h47

11
ESTAR-CONSIGO

Evoco teu silêncio
tua palavra em ti mesmo
receptáculo de tua sombra.

Evoco as coisas presentes
olhos d’água que vertem dias
chuva mínima e pranto
colhidos de tua mão.

Cessaram sua passagem
linha de horizonte largo
nau semovente erguida
fenda abissal e antiga.

Tua fundura, imersa fonte
veio de impostas folhas
por entre passos
esses lugares achos
coisa longínqua e certa.

Ficam os vãos
entre livros abertos, esparsos
qualidade de fênix e tempo
gema cindida de tua rocha.

Fértil, a terra se encontra viva
acolhe lagos e cinzas
um paraíso que ainda existe
um estar-consigo
por mais remoto que seja.

17/03/2007 – 00h20

12
O SOM DOS MARES

Mares,
estes oceanos que não se bastam,
alva escuma para além das proas,
foz tardia sobre mãos náufragas.
O que ocultaste de minha centelha amarga,
meu cais de sombra, pedra certeira,
onde aportar por ser preciso?
Vim, por toda a senda em busca de sementes,
solo aberto para recebê-las todas,
essas arcas de vida que chamamos tempo.
Vê, ainda sobram tardes nos portões da casa,
e a luz ainda dorme sobre o muro de hera.
És mais antigo por teres te esquecido de ti
nestes interstícios entre a noite e a alba.
Mares se irmanam sobre as fendas.
As águas espraiam-se por toda a parte,
e ecoam com uma voz que não se ouve.

18/03/2007 – 17h26

13
ÁUGURE

Enfim narciso vence as águas
celebrada imagem de sua candura
lírio exposto à superfície
semblante natural a fitar os dias
olhar manso e diurno
cenho frágil e casto
fluidez de seu tempo áugure
a devolver o alento
que sobre seu rosto
respira.

21/03/2007 – 16h12


14
FADO

Renascer, esta qualidade de cada manhã,
repõe a vida onde ela está.

Tu, estendido sobre a cama dos dias,
te ergues, novamente, à espera.

O mais é desvida,
teu olhar para o que está à tua volta.

Sei que cumpres teu destino,
que a nenhum outro foi dado.

Este, o fado da poesia:
havê-la enquanto se vive.

31/03/2007 – 23h58

15
BELOS DIAS

Belos,
os dias não passam.
Ficam estáticos à sombra
de outro sol que não se põe.
Vemos sempre a aurora
sobre o caos de agora.
Erguemos os frondosos braços
para colher os pomos
e atear fogo aos silêncios.

1/04/2007 – 12h49

16
FIDELIDADE

És permanente em teu gesto,
teu lavrar de ouro,
a justa medida de tua fala.

Homem de símbolos,
tua palavra não se basta.
Ergue-se em teus atos
o alabastro das torres
imaginadas.

Cimo de minha ventura,
edificas-te além de toda imaginação.

Fiel a ti mesmo e a mim.

15/04/2007 – 12h41

17
AGORA

De que me curo a esta hora, curvada mão
sobre meu braço, me detendo, auscultando,
íngreme, lancinante passo,
vinho de ocres uvas derramado.

Detém, o rosto descoberto, o que há muito
já é perfeito, essa mancha, essa ferida,
a dobrar-se, mínima, sob o olhar cerrado.

Verte e, de vez em vez, assim obra,
a carne, víscera profunda, o flanco, o dardo,
para cada gota de teu sangue amaro.

Esta a cura de todo o passado remido:
não me saber pronta senão agora.

23/04/2007 – 00h38


18
VIDA ESTREITA

A vida se estreita,
prenhe,
tecendo obra e vida
sob a carne.
Silencias tua palavra,

Sempre foram tuas as palavras,
a certeza da mão suspensa
em meio gesto.
Sempre foi teu o olhar, antes.

Em ti, a palavra se renova.

À parte de mim existiram os dias,
amplos quartos onde as tardes não findavam.

A casa é oca como casca de noz partida
que cai da mão depois de saciar-nos a noz.

Pequeno repasto,
diminuto cérebro na palma da mão,
encerrando seu ser
no vazio.

30/04/2007 – 28/06/2007

19
DIZER TEU FUTURO

O dia não começa mais cedo;
mais cedo só começam as manhãs,
essa luz aberta sobre um horizonte maior.
Ante a manhã são os estáticos olhos que perscrutam,
não este mar, mas as mãos, e tudo o que fazem.
Fazer menos, para conter mais entre palavras que não dizemos.
Adivinhar o desígnio da pedra ao tocá-la,
dizer teu futuro no que não vemos.

21/07/2007 – 22h25

20
AS ROSAS
(D’après Rilke)
Para Janice Caiafa

1.

São as rosas que me ferem,
coroa de flores, guirlanda,
urdido ninho em que me postas,
braços cruzados sobre o peito.
São rosas claras, de pétalas vagas,
sombreadas,
pousadas sobre a água,
onde umedeces teus dedos.

2.

Teus ombros arcam-se, antigos,
sobre um horizonte imaginado,
líquido, invisível,
contorno de árvores adivinhadas,
trama de galhos a conter as flores.
Nós, que viemos, teremos os lugares
como sinais de que existimos antes.

2/09/2007 – 3h30

21
ALVÍSSARAS

tua cor
previdente aurora
precipício
toda carne
todo flanco
abordam.
puro olho
cristal reverso
a me ver.
mirada.
(admiro a longa
hora deste dia.)
latifúndios em teus lados
: casa cílio entreaberta.

3/10/2007 – 1h11

22
O ÁTIMO E O ÚLTIMO VERSO

Vê o que me identifica
em teu ser:
(quando despertas
é que te vês mais brando)
eu, escolha minha,
pouso entre este átimo
e o último verso,
florada deste canto,
finura extrema,
toque de sedas,
véu púrpura e cálice,
fendido lastro,
estranha arca,
entranhado vão.

O que te molda
compõe teu rosto,
silente receptáculo de luz,
lábio trêmulo
e extremado.
Curva de teu queixo,
enquanto
dormes.

3/10/2007 – 23h14

23
ALVÍSSIMO
Para Nilton Alves, in memoriam

Ficaram os versos
numa colina
arremetidos contra a claridade
do céu.
Esse perfil de águia
a perscrutar o horizonte
não basta para o vôo
mais alto.
Palavras sempre chegarão tarde.
Tarde demais para consolar,
conciliar,
fazer verter o que estava
esquecido.
As horas são possíveis
por haver palavras.
Sem elas, não passarias
adiante,
como agora.

18/10/2007 – 15h06

24
À GUISA DO TEMPO E DA ESPERA

Assim nasceste para conferir auroras,
esse travo, dilacerante amargo
de dulcíssimos favos.
Esses dias findos serão postos de lado,
como cada coisa é posta de lado ao seu fim.
Os livros permanecerão intocados,
pois é passada a hora de abri-los.
Erguerás os olhos para o alto muro,
onde divisas a margem de outro dia
e te porás a pensar sobre o que não houve.
Terão passados todos os anos à tua espera,
como um silencioso senhor espera sua dama.
A morte não passará por perto, pois perto de ti
só há vida e a vida em si mesma se elabora.
Haverá uma sebe de heras à tua volta,
pois sempre exististe num jardim.
Mesmo que o tempo passe,
será possível relembrá-lo agora,
com tua palavra deixada sobre o papel.

18/10/2007 – 15h30

25
A REPETIÇÃO DA AURORA

O tempo pende sobre uma paisagem estéril.
Aqui não há visões do paraíso.
As montanhas carregam suas névoas
como um manto pesado demais para erguê-lo.
Serão assim as manhãs futuras,
onde a terra desce aos juncos para sorver o que resta
de lágrimas.
Podem deixar as vestes dobradas, o linho amarfanhado,
a casa por limpar.
O tempo não me pede pressa, ao contrário,
pede que eu não diga nada aos que ficaram.
Serão manhãs longas como esta, em que pensar
sobre o dia não o faz passar.
Logo ele acaba como começa, sem aviso.
Pendemos para o que nos falta – esta réstia de horas
sobre o instante.
A perenidade é memória, o presente vivido
sem repetir o gesto.
Sem a repetição da aurora.

19/10/2007 – 12h40

26
NATURALMENTE AS PORTAS SE CERRAM

Naturalmente as portas se cerram
e, por trás delas, guardam-se memórias
e a solidão das coisas depois que as deixamos.
As xícaras suportam a escuridão dos armários
e as roupas aguardam ressurgirem à luz.

Tudo é sombra quando se espera.
Um traste perdido está só no último vislumbre:
postou-se além de um horizonte
de onde não mais regressam.

Tantos traços, vestígios, rastros,
restos passados assombram nossa mente,
buscando recriar o espaço em que existiam.

Assim, depois de partir, os mesmos rastros
persistem além de nós,
lembrando-nos em nossa ausência.

26/10/2007 – 9h02 –– 2/12/2007 – 23h22

27
MELHOR

Com que propósito se tece a trama
urdida face a contemplar os anos?

Sob o véu do tempo passam-se os dias
névoa fugidia e escassa
o chão breve a resvalar as vestes
passo e perda
caminho outro.

Descem os pés ao andar das horas
a bater silentes sob o vão das portas
passagem, ermo, paisagem, outrora.

O passado fecha as janelas do ontem.
Dormitam os minutos nas compotas
doces caseiros para deliciar palatos.

Descemos ainda mais fundo aos sóis
guardados sob as camas
frágeis tapetes pisados de leve.

Toda a vida é um fio prestes a partir
e mesmo assim não se parte
e aguarda seu momento.

Em nossa memória estão todas as coisas
presentes, passadas e futuras
sem podermos vê-las, que subitamente
alçam um vôo de peregrinação ao hoje
e por isso pensamos no que acontecerá.

Ainda assim entre o lento e rápido caminhar
todos os dias se detêm e passam
a circunavegar os olhos pela sala
demorando-se para se lembrar depois.

Abrem-se as cortinas do quarto
e o que vemos?
Cômoda, armário e cama, quadros
livros e roupas largadas
numa mistura impossível de rastros.

A luz contorna os objetos e todos estão lá
à espera do toque, observando de sua larga
distância, o passar dos dias, o viver das horas
a sombra e a luz, a noite e a lua a se lançar
sobre o rosto das pessoas.

Viver deixa de ser importante
e trabalhamos incessantemente
para urgência que criamos.

Amar passa a ser escolha
e tudo se acomoda sob o céu
das circunstâncias.

Optamos por não ser, não fazer
não dizer, não pensar. Melhor é o não.

Um não no lugar do sim.

Melhor.

10/12/2007 – 21h12

28
O SILÊNCIO
A Benazir Bhutto, em memória

Derramem-se as flores.
Este dia passará.
Todos estarão entregues
à dor de serem efêmeros.
A vida passará.
Passarão os homens e mulheres
que choraram, riram e viveram.
Passará o gesto, o olhar, a voz, a luz.
Mesmo as flores passarão.
As aflições morrerão com elas.
Nelas restam os adeuses e o silêncio.

31/12/2007 -– 1h15

29
ACOSTUMA-TE

Acostuma-te ao olvido.

Tuas breves sementes se foram.

Serão bem-vindas as águas depois do dia posto.

Vê a montanha, a distância que percorres,
a absinta névoa de arrufos.

Sê a estreita hora em que pões teu verso,
urdida trama de teu pensar constante,
nascedouro ázimo, auscultado e ermo.

Leva o beijo à boca do cego.
Suas mãos tateiam e nada têm.

Dê o que lhe falta, hoje.
Só o que ele não vê existe.

2/02/2008 – 17h12

30
PROPÓSITO

Há sempre um propósito que não alcanço,
mas dita seu célere ditame para que eu o ouça.
Ouve, voz amada, a tua candura,
tantos cenhos se espantarão tendo-te como alarido.
Eis esta hora silenciosa dos castanheiros,
em que fazes uso de tua lâmpada,
a queimar longinquamente teu esquecimento.
Assim és, para apaziguar a voz que nunca cessa,
para dar passo à caminhada, esta que não se interrompe.

10/03/2008 – 1h25

31
A PRIMEIRA HORA

Busquemos a primeira hora,
o não-gesto, o ato insensato,
a não-espera, todas as coisas
sem causa, petrificadas em seu acaso,
a não-coisa intangível,
e busquemos rápido antecedê-las,
antecipá-las de todo modo,
para que passe sua existência
e ela precise não ser para se tornar absoluta,
fração química de sua contraparte tácita,
em que o sussurro expresse o entendimento
e a metáfora se extinga,
deixando os lábios emudecidos,
sem nada dizer.

10/03/2008 – 1h41

32
ORBE LÚDICA

Uma montanha é ainda uma montanha
mesmo se não vista, ou antes,
irreal e somente imaginada,
um promontório pacífico diante de tudo,
a estar sobre si mesma, como um rio que flui.
A montanha e o rio se arremetem
sobre a paisagem nunca vista
e vê-se o rio e o horizonte,
como se ainda estivessem lá,
à espera.
Ah, orbe lúdica de um sem-fim
prometido e amado,
tão belo quanto serafins
a pousar as asas sobre a crista das nuvens.
A montanha existe onde a imagino
e ela se move além, como o rio que flui.
E possuo a paisagem sem ser minha.

11/03/2008 – 22h07

33
ESPERA

I

Esta escura noite espera
que passem os sons de vigília,
as batidas de pé no chão,
as cascas das nozes partidas
e o mel das flores que aguardam.

Encruzilhada de sons, vida posta
diante dos que galgam a altura maior.
És maior que o mais alto ramo,
partido cesto de teu abrigo.

Guarda, guarda assim a manhã,
confusa hora despercebida,
nada tarde, nada dito,
perfeito olvido.

II

A que propósito te serve a flecha,
arco bramido,
da secura de tuas mãos,
avesso ao toque das centúrias,
tua tez anfíbia,
porejados odres de vinho?

A que servem as dádivas,
oleiro de tua brandura,
fenício egresso da planície,
tua carne marcada de tempo,
febril palavra do pergaminho?

A que me bastam as hostes,
celebrada fauna de teus pais,
floresta espessa de folhas
a brandir o vento outonal?

A ti serve este sabre,
arma trazida junto ao corpo,
tangida por tua mão sábia,
amados olhos sobre o destino
de teu gesto.

12/03/2008 – 00h45/1h01

34
TODAS AS ÁGUAS

Emergem todas as águas,
flanco único,
rios à margem do dia,
claves a separar as dores,
flores, estática fadiga,
lonjura de mastros
em precipícios,
colunas à beira do penhasco,
a casa a verter silêncios,
olhos, porejar de cantos,
laivos de estrelas já extintas,
mãos guardadas para depois,
grãos, estes minúsculos corpos,
a vida nova, pregressa,
cálculos, barcos,
este retilíneo horizonte
encurvado sobre o peso da terra.
Florestas floridas
antes do inverno
a enterrar os frutos e as sementes.
Manhã, este breve anúncio
desta hora íntima,
colhida no afago de adeuses.

4/04/2008 – 00h50

35
A CASA

Essa a casa.

A areia em que assentaste tua messe
aqui se eleva acima do horizonte
perdido lume a apontar distâncias
de um céu e outro que tomba sobre a terra.

Concebes a casa onde estiveste
vestígio de bruma e nau despida.

Teus velames, cordas estiradas
a girar a roda de tua fortuna.

12/04/2008 – 14h30

36
SALTO

O que mais há,
na destêmpera de agora, o fruto,
frágil e circunspecta medida de tempo,
enquanto espera.
A vida há de ser mais larga
por vê-la de fora, e de dentro,
fecha-se em escarpa e, íngreme,
ausculta o salto.

6/05/2008 – 3h23

37
ORAÇÃO

Ouço, na clareza
desta tarde,
o sol se pondo
sobre a terra escura.
Eu, qual peregrino,
no silêncio de minha prece,
oro em versos que me fogem.
Fico, na caverna, entre crânios
limpos, catacumbas
de meus santos.

30/05/2008 – 13h53

38
CANTILENA

O que fui de início e já não sou,
cantilena de repastos múltiplos,
ordem de vida e de estreiteza,
sinal de homens e tristeza.
O que sou e não reconheço,
uma face mais antiga do que esta,
esta, nova, e ainda amena,
para que serve, alento e personagem?
Não sei e o que serei
é muito.

23/06/2008

39
A OBRA

Ele diante de sua sombra.
A bruma descrita de seus sonhos.
Essas palavras perfeitas,
símbolos de outra hora.
O azul opalescente do meu pensamento
frágil, embora tenso,
ainda a fremir o toque
por que tudo o mais
existe.
Esta espera diante da porta,
este tinir de frestas,
esta proximidade côncava e absurda,
esta mão a suportar a outra.
Eis a misteriosa fé,
a relíquia de mil dias,
a noite, o amanhecer e a tarde
tocadas pela mesma luz.
O ser diante dos mares.
A voz e seus ecos
refletem um mesmo lado
possível,
e tudo o mais não é senão a vida,
prematura senda aonde nos enviam
tão cedo.

22/07/2008 – 1h56

40

ERGUES UM ABISMO DE NADAS.
Vives, sôfrego, partindo sempre,
voz emudecida de adeuses.
Virão todos sobre teu corpo
transmudado,
flores tímidas, noites roucas.
Seremos qualquer coisa além dos píncaros,
luzes foscas a beber as horas.
Vertes no silêncio a paisagem,
horizonte vivo a habitar os olhos.
Livros, páginas surdas,
deslizam versos sem espelhos.
Teu breve gesto ecoa:
a noite se constrói sozinha
sem palavras.

41

VÊ-TE.
A serra aguda de todos os seres,
balsâmicos talos de oriundas imagens,
secretíssimos rios serenos e suas margens
a navegar por onde passam a pêlo.

Enfim,
as coisas cerram-se em si mesmas
por pertencerem a outro modo de existência,
percebendo toda a história antiga nos afrescos
sobre todas as paredes.

Ergue-te.
Não passarão as tuas horas a esmo,
por seguires os mesmos tormentos,
heras, garças, plumas de aves aquáticas,
dorso de peixes a preencher o horizonte.

Vejamos:
A esfera posta sob o arco desenha um perfeito
pássaro emplumado, azul em sua pose, rarefeito
como arte, símbolo e graça. Serão eles os póstumos
de tudo a orar e ornar o pensamento.

Serão
estas as horas lembradas e depois esquecidas
por onde seríamos os mesmos a firmar, atentos,
e não havermos nunca retornado os passos,
porém, sós, antes e hoje, mais cedo.

Eis
o que restou dos dias e meses que se passaram.
O que sabemos, deixamos abandonado
a cismar sobre o havido, o perdido, o nada.
E aqui estamos por ser os que ficaram.

42

VIDA E SEUS LARGOS CAMPOS,
ermos, trilhas revisitadas,
vãos fundos e parcos silêncios,
planícies e espraiados montes,
toda luz liberta de seu desígnio,
alcova, meticulosa fala,
berços, mãos e candelabros,
obras, livros abertos,
tessituras frágeis em remotos lenços,
invisíveis bordados, a alma despida,
visões de sonhos, paraísos ocultos,
nuvens distendidas, algum horizonte,
cumes, charcos, montanhas longínquas,
horas neutras, rostos oblongos,
vertidos cálices, vistosa chama,
laços, lagos, alguma fímbria,
madrugada extensa,
círculos na água, passos longos,
ombro, sombra, nascedouro.

43

A CIDADE SE MANTÉM
em seu ar perfeito
onde céu e horizonte
caem com o azul de outra tarde.
O braço recorta o lago.
As casas se avolumam no estreito,
abrindo outro mar sobre a terra.

44

CONFIDENTE E HEREGE,
move-te uma paixão surda,
enquanto vagas sob as pilastras
erguidas há muito tempo.
Vazias estão as aras,
amplas salas sem paredes,
janelas sobre um horizonte escuro,
casas muradas suspensas pela noite.
Não mais andarei sozinha pelos campos
a ouvir a melodia dos riachos
e a sentir o vento cortar a pele.
Nada se parece com o que foi feito.
O tempo não regressa
aos jardins do nada.